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Fernandão e Claudio Milar em jogo pelo Campeonato Gaúcho de 1998 (Foto: Marcel Avila) |
Era uma madrugada. Eu tinha uma aula preparatória para o
PAVE, que hoje nem sei se ainda existe. O que importa era que, por causa disso,
eu dormia. Por causa disso, a porta do quarto estava fechada.
De repente a luz da sala se acende – percebo pelo fio que
entra pela fechadura e por baixo da porta. Sempre tive uma dificuldade maior em
dormir com a luz da sala ligada, qualquer barulho me acorda em uma situação
dessas. Tentei dormir, mas não conseguia. Tava naquele “se eu pegar no sono agora, vou
dormir seis horas. Se eu pegar no sono agora, vou dormir cinco horas”. Mas
depois de um tempo a contagem de carneirinhos deu resultado e capotei.
Por pouco tempo.
Os barulhos aumentavam na sala, o que é que eles tão fazendo
acordados a essa altura da madrugada? A TV deve estar boa. Mas era barulho de
rádio que eu ouvia. Cada vez mais curioso.
Aí minha mãe abriu a porta do quarto. Acidente com a equipe
do Brasil. Não parecia grave, ao que voltei a dormir.
Minha mãe voltou. Parece que deu ruim mesmo. Bom, amanhã eu
fico sabendo melhor. Mas já um pouco nervoso.
Minha mãe voltou. Tem mortos. E o Milar? Não, parece que ele
tá bem. Um repórter da rádio disse que falou com ele (hoje essa é a informação
mais estranha de todas). Já não consegui dormir. Mas ainda tentei.
Minha mãe voltou. O Milar morreu. Sereníssima. Não deitei
mais. Fui pra sala e meu pai estava com o rádio ligado, ouvindo ao mesmo tempo
atento, preocupado e cabisbaixo. Sem falar nada. Eu fazendo algumas perguntas,
mas sem esperar respostas, queria apenas fazer perguntas.
Fui para a aula no dia posterior. O professor, um que sempre
tive as maiores diferenças, sendo o único encontro o Xavante, disse que não
tinha clima para dar aula e perguntou se nos importaríamos se ele a cancelasse.
Claro que não. Ficamos eu e dois amigos, cabisbaixos com o meu pai, a tentar
traçar o futuro do clube.
Acho que acabou.
Acabou nada, é o Brasil.
Cara, nunca vai ter dinheiro para se reerguer.
Os times vão ajudar.
Quem que ajuda alguém hoje em dia no futebol?
Surgiu até um comentário insensato, de quem está com muita
dor. De que poderia ter sido outro no lugar dele.
Quem não gosta de futebol, claro, vai achar que sentir dor
pela morte de um jogador de futebol é coisa besta. Fútil, até. Woody Allen,
gênio, menosprezou o esporte algumas vezes. Virou quase uma afirmação de inteligência
demonstrar repúdio ao futebol. Besteira.
Para aqueles que não têm muita fé de que a vida pode um dia
ser boa – às vezes me coloco nesse grupo - , ver um representante do amor e da
raça morrer de uma forma tão banal, em uma curva, e de uma forma tão cruel como
foi a de Milar, é um baque e dos grandes.
Tira a esperança de um futuro melhor.
É mais um dos bons partindo.
Não vi Sócrates jogar. Nem perto disso. Pouco conhecia dele
até o momento de sua morte. Porém, quando ele morreu, resolvi pesquisar sobre
sua vida – dentro e fora de campo. Me encantei. Não só porque Sócrates tinha
lado fora das quatro linhas e esse lado era sempre o esquerdo. Porque Sócrates
tentou implantar essa política que tanto gostava, no micro. Na comunidade. No
seu caso, dentro do Corinthians. E dessa forma revolucionou o bando de loucos.
Recentemente comprei uma biografia do Doutor. Escrita por sua
ex-mulher de forma muito inteligente, partindo do dia da sua morte para só
então voltar no tempo. Só me encantei mais ainda pela pessoa de Sócrates.
Craque dentro de campo, gênio fora dele. Se fosse do meu time, seria o meu
predileto de todos os tempos.
Por causa disso, Milar o é.
Fui, como todos nós, surpreendido pela morte de Fernandão. Já
disse aqui algumas vezes que, além de torcedor do Brasil, torço também pelo
Grêmio (procurem no youtube a explicação de Gilberto Gil sobre o porquê de ser
gremista). Logo, sempre tive raiva de Fernandão. Fez gols que me deixaram
realmente furioso. Porém, mais do que respeitar, sempre admirei. Não aquele
papo raso de “admirar o rival”. Não. Eu admirava, assim como o ser humano Milar
e o ser humano Sócrates, a pessoa de Fernandão.
Milar e Fernandão tinham um sonho em comum: contribuir para
seus times do coração fora das quatro linhas, mas dentro do clube. Queriam ser
dirigentes. Milar, infelizmente, não teve essa oportunidade. Fernandão teve.
Rapidamente.
Não conheço muito bem a história, mas me deixou um pouco
menos esperançoso em relação ao futebol vê-lo sair do cargo. Talvez por ser uma
função deveras burocrática, algo que os futebolistas (fora volantes como Busquets)
não devem gostar muito, mas talvez também por, lá dentro, no núcleo de um
clube, ele tivesse contato com o mais podre do futebol.
Porém, tê-lo vivo me dava esperança. Em tempos de Bom Senso
F.C. (necessário), que luta por direitos para os jogadores, Fernandão, Milar e
Sócrates lutavam, também, pela sustentabilidade dos clubes que amavam. Talvez
sua morte possa servir para que se reflita mais sobre isso – mortos costumam
ter sua mensagem passada muito mais rápido. Mas vai seguir sendo muito triste.
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